A linguagem popular baiana é uma das principais vias de expressão do que se considera a baianidade. Até porque ela é fruto de outras duas importantes características do ethos baiano (além dela própria, a linguagem): o bom humor e a criatividade. Só mesmo o espírito baiano para inventar expressões como “espanta nigrinha” (perfume barato, vagabundo), “pão donzelo” (pão puro, sem manteiga) ou “fazer terra” (tirar sarro em ônibus cheio). Essas e outras centenas de expressões, típicas de nosso dia-a-dia, refletem bem a brejeirice, a picardia, a malícia e, fundamentalmente, o humor do baiano.
Mas além da criatividade “morfológica”, a linguagem popular baiana possui outras características. Existe uma tendência à redução das palavras, à simplificação silábica – reflexo sem dúvida da influência africana – muito comum nos nomes próprios: Fátima é “Fal”, Maria das Graças é “Gal”, Gerusa é “Gel”,Janete é “Nel” e assim por diante. Ou a nazalização forte da pronúncia em palavras como banana, camarão, gamão. É comum também a supressão da pronúncia do dígrafo nh nos diminutivos (painho, bonitinho). Ou o uso das vogais abertas em coração, felicidade, português (mas não em prefeitura, como insistem as ridículas tentativas de imitação do sotaque nas novelas, num verdadeiro crime cultural). É costumeira também a simplificação fonética, reveladora de outra característica da baianidade, que podemos chamar genericamente de “facilitação das coisas”: balostrada em vez de balaustrada (muito mais difícil de pronunciar…), comongol em vez de combongó, Almêda em vez de Almeida, e o indefectível “r” antes do “s” no meio das palavras, suprimido como em Tirso (Tisso), discurso (discusso), ou em cerveja(ceveja) e percevejo (pecevejo). É usual ainda a supressão do dígrafo lh em palavras como Ilhéus (Iléus) e vida alheia (vida alêa). Sem contar outras, menos comuns, como Caró em vez de Carol e futebó em vez de futebol.
Na música do falar, é difícil de descrever – mas fácil de perceber – a entonação decrescente nas frases interrogativas e a leve pausa após o sujeito no início das sentenças.
Esses falares, assim como os demais ingredientes da receita desse bolo delicioso chamado baianidade, são derivados – extrema simplificação! – do caldo cultural formado pelo mistura do europeu, das nações indígenas que aqui viviam e pelas diversas nações africanas que aqui aportaram. Esse processo de formação da identidade baiana (onde os ingredientes do bolo são conhecidos, mas a receita e o preparo ainda são um mistério) resultou nos exemplos mais óbvios das características do baiano típico, como a hospitalidade, a cordialidade (que, como ensina o mestre Cid Teixeira, não devem ser confundidas com intimidade), o dengo, a musicalidade, o gingado.
A esses atributos – mas ainda no campo da superficialidade, já que no campo antropológico o buraco deve ser mais embaixo – pode-se ainda acrescentar a culinária, a beleza natural, a espontaneidade, o bom humor, a safadeza (no sentido descarado da palavra), a criatividade e a originalidade cultural, a variada expressão corporal, a religiosidade e, evidentemente, a linguagem, cuja expressão popular, o baianês, como já dito, é um dos principais símbolos do jeito de ser baiano, ao representar, por suas diversas expressões, muitas das particularidades que compõem o espectro da baianidade.
Assim, podemos estabelecer uma espécie de “glossário”, que relacione alguns verbetes da linguagem popular com um sentimento ou alguma marca da baianidade:
“GLOSSÁRIO”
Hospitalidade/cordialidade
“amigo-irmão”, “colé, velho?”, “digaê Bahia!”, “minha corrente”, “e aí, papá?”
Dengo:
“chegue, meu nego“, “queira!“, “me dê um cheiro“
Culinária
“abafa-banca“, “aimpim“‚‘‘alferes”, “avoador“, “cacetinho”, “fatia de parida“, “mingau de cachorro“, “malassado“, “menorzinho“, “mungunzá”, “passarinha”, “vara”
Espontaneidade
“aff!“, “aonde!?“, “Aff Maria!”, “crendeuspai!”, “Deus é mais!”, “Vige Maria!”
Musicalidade
“bora”, “borimbora”, “rumbora”, “opaió”, “oxe!”, “oxente!”, “xen, xen xen!”, “é ninhua”
Criatividade e a originalidade cultural
“amarrado de corda“, “banda-voou“, “barão/barona” , “bater a caçuleta”, “bolacha quebrada“ ,“buzu“, “cagado e cuspido/cuspido e escarrado“, “canguinha/canguinhagem“, “casquinha/casquinhagem“, “cheio do pau“, “comidilha“, “dar um tangolomango“, “de caju em caju“, “estabocar“, “dor de facão“, “enrolado no xale da doida“, “enxame de gente“, “espanta nigrinha“, “falar mais que a nega do leite“, “folozado“, “lavar a jega“, “num-sei-quenzinho”, “patapata”, “quente-frio”, “tampa de binga”
Safadeza
“badogueira”, “bater soro”, “bozenga”, “bunda chulada”, “canhão”, “catiopiu”, “chibungo”, “comer água”, “criatura”, “dar no couro”, falapau”, “fazer o decote”, “fazer ozadia”, “fazer terra”, “gala-rala”, “jaburu”, “mamão”, “mocréa”, “pacuçu”, “quenga”, “tribufu”.
Nivaldo Lariú
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